Com a palavra
NELSON ASCHER
A história sem fim
No poder, vendedores de utopias constatam que a repressão é melhor para manter as massas na linha
ATÉ CONCLUIR meus estudos formais (os informais, mal os iniciei), só tinha tempo para visitar o Velho Mundo no inverno de lá. Fui, portanto, surpreendido pela intensidade de meu primeiro verão europeu, se bem que, ainda não iluminado por Al Gore, eu atribuísse suas piores agruras à escassez de ar-condicionados, algo resultante das decisões de governos que julgavam mais útil financiar, por exemplo, os cineastas nacionais do que investir na sobrevida de cidadãos idosos. O Leste, aonde me dirigia, prometia temperaturas ainda mais altas e menos refrigeração. Meu roteiro, planejado de antemão, não comportava mudanças. O calor, porém, seria o menor dos incômodos. Como acontece com as moças paulistanas, cujas gordurinhas extras as roupas de frio ajudam a camuflar, o inverno contribuía para amenizar todas as carências e defeitos do que chamavam, então (1989), Segundo Mundo (aquele que, ao contrário do Primeiro, era miserável, e, ao contrário do Terceiro, achava que não era).Durante minha passagem 12 anos antes pelo império soviético, as condições vigentes não contrastavam tão escancaradamente com as da Europa ocidental. Que diferença uma década faz! Nada havia em Budapeste ou Belgrado, nem produto nem serviço, que não fosse inferior ao que quer que houvesse em Paris ou Viena. A grande diferença, no entanto, se condensava no ar: por um lado, a auto-satisfação dos capitalistas e, por outro, a perpétua irritação dos comunistas com sua situação.Nem assim era evidente que as ditaduras que haviam, por meio século, mantido seus súditos numa miséria artificial estavam prestes a desmoronar. Mas tampouco era fácil imaginar como, em meio a uma economia sucateada, dirigindo carrinhos enferrujados e altamente poluentes entre ruas sujas, passeando trajada de roupas puídas diante de lojas sem mercadorias, uma população ciente da fartura que existia do outro lado da fronteira toleraria sua sina por uma geração.Tamanho foi o alívio com que se recebeu a derrocada desses regimes que até seus funcionários se alegraram. Devido ao fim da censura, ficou-se sabendo o que muitos suspeitavam: que o sistema imposto aos países da região não contava mais com nenhum apoio. Mesmo os europeus ocidentais, que nunca haviam se incomodado demais com as tiranias vizinhas, mostraram-se satisfeitos, enquanto, mundo afora, aqueles que dias antes ainda defendiam as virtudes do coletivismo optaram por um silêncio prudente.Afinal, é complicado, para quem crê que aos acasos da história subjaz uma racionalidade, desafiar tamanha unanimidade como a que envolveu os eventos coroados pela queda do Muro de Berlim. A naturalidade com que tudo transcorreu, seu caráter quase imediato de fato consumado bem como o silêncio tático dos insatisfeitos contribuíram para que um fenômeno complexo e decorrente de um sem número de escolhas feitas em cada lado de um prolongado conflito global assumisse certo ar de inevitabilidade, o que se traduziu em teses neo-hegelianas como a do "fim da história".Malgrado naqueles dias parecesse que regimes dispostos a encarcerar povos inteiros não recuperariam sua popularidade, pode-se, a dois decênios de distância, ver que uma conflagração que contrapunha unidades geográficas não apenas não se resolveu como recobrou seu vigor tornando-se algo diferente. Ela foi definitivamente internalizada pelas sociedades ocidentais que, em termos de sua auto-imagem, estão mais cindidas hoje do que jamais estiveram. E não seria exagero falar numa "Guerra Civil Fria".Se a maioria considera o Ocidente atual o menos ruim dos mundos possíveis, uma minoria militante, livre do embaraçoso Segundo Mundo e apostando (com razão) na amnésia generalizada, responsabiliza-o por tudo o que possa haver de ruim. Para estes, qualquer alternativa é preferível. Caso o mercado, que nada promete, não gere muito mais do que o socialismo (sem cumpri-lo nunca) prometia, então já se justifica usar os mecanismos democráticos para abolir a democracia.Uma coisa é certa. Tão logo se apossem firmemente do poder, os vendedores de utopias logo constatam que há meios mais eficazes e baratos de manter as massas na linha do que repartindo as riquezas cada vez mais escassas do país. O melhor custo/benefício é fornecido pela repressão. E, ao despedir-se da democracia, a população, que esperava viver da renda alheia redistribuída, garante somente que passará décadas, como a Europa Oriental, trabalhando o dobro e ganhando a metade para sustentar a polícia secreta.
A história sem fim
No poder, vendedores de utopias constatam que a repressão é melhor para manter as massas na linha
ATÉ CONCLUIR meus estudos formais (os informais, mal os iniciei), só tinha tempo para visitar o Velho Mundo no inverno de lá. Fui, portanto, surpreendido pela intensidade de meu primeiro verão europeu, se bem que, ainda não iluminado por Al Gore, eu atribuísse suas piores agruras à escassez de ar-condicionados, algo resultante das decisões de governos que julgavam mais útil financiar, por exemplo, os cineastas nacionais do que investir na sobrevida de cidadãos idosos. O Leste, aonde me dirigia, prometia temperaturas ainda mais altas e menos refrigeração. Meu roteiro, planejado de antemão, não comportava mudanças. O calor, porém, seria o menor dos incômodos. Como acontece com as moças paulistanas, cujas gordurinhas extras as roupas de frio ajudam a camuflar, o inverno contribuía para amenizar todas as carências e defeitos do que chamavam, então (1989), Segundo Mundo (aquele que, ao contrário do Primeiro, era miserável, e, ao contrário do Terceiro, achava que não era).Durante minha passagem 12 anos antes pelo império soviético, as condições vigentes não contrastavam tão escancaradamente com as da Europa ocidental. Que diferença uma década faz! Nada havia em Budapeste ou Belgrado, nem produto nem serviço, que não fosse inferior ao que quer que houvesse em Paris ou Viena. A grande diferença, no entanto, se condensava no ar: por um lado, a auto-satisfação dos capitalistas e, por outro, a perpétua irritação dos comunistas com sua situação.Nem assim era evidente que as ditaduras que haviam, por meio século, mantido seus súditos numa miséria artificial estavam prestes a desmoronar. Mas tampouco era fácil imaginar como, em meio a uma economia sucateada, dirigindo carrinhos enferrujados e altamente poluentes entre ruas sujas, passeando trajada de roupas puídas diante de lojas sem mercadorias, uma população ciente da fartura que existia do outro lado da fronteira toleraria sua sina por uma geração.Tamanho foi o alívio com que se recebeu a derrocada desses regimes que até seus funcionários se alegraram. Devido ao fim da censura, ficou-se sabendo o que muitos suspeitavam: que o sistema imposto aos países da região não contava mais com nenhum apoio. Mesmo os europeus ocidentais, que nunca haviam se incomodado demais com as tiranias vizinhas, mostraram-se satisfeitos, enquanto, mundo afora, aqueles que dias antes ainda defendiam as virtudes do coletivismo optaram por um silêncio prudente.Afinal, é complicado, para quem crê que aos acasos da história subjaz uma racionalidade, desafiar tamanha unanimidade como a que envolveu os eventos coroados pela queda do Muro de Berlim. A naturalidade com que tudo transcorreu, seu caráter quase imediato de fato consumado bem como o silêncio tático dos insatisfeitos contribuíram para que um fenômeno complexo e decorrente de um sem número de escolhas feitas em cada lado de um prolongado conflito global assumisse certo ar de inevitabilidade, o que se traduziu em teses neo-hegelianas como a do "fim da história".Malgrado naqueles dias parecesse que regimes dispostos a encarcerar povos inteiros não recuperariam sua popularidade, pode-se, a dois decênios de distância, ver que uma conflagração que contrapunha unidades geográficas não apenas não se resolveu como recobrou seu vigor tornando-se algo diferente. Ela foi definitivamente internalizada pelas sociedades ocidentais que, em termos de sua auto-imagem, estão mais cindidas hoje do que jamais estiveram. E não seria exagero falar numa "Guerra Civil Fria".Se a maioria considera o Ocidente atual o menos ruim dos mundos possíveis, uma minoria militante, livre do embaraçoso Segundo Mundo e apostando (com razão) na amnésia generalizada, responsabiliza-o por tudo o que possa haver de ruim. Para estes, qualquer alternativa é preferível. Caso o mercado, que nada promete, não gere muito mais do que o socialismo (sem cumpri-lo nunca) prometia, então já se justifica usar os mecanismos democráticos para abolir a democracia.Uma coisa é certa. Tão logo se apossem firmemente do poder, os vendedores de utopias logo constatam que há meios mais eficazes e baratos de manter as massas na linha do que repartindo as riquezas cada vez mais escassas do país. O melhor custo/benefício é fornecido pela repressão. E, ao despedir-se da democracia, a população, que esperava viver da renda alheia redistribuída, garante somente que passará décadas, como a Europa Oriental, trabalhando o dobro e ganhando a metade para sustentar a polícia secreta.
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